13 de setembro de 1848
Cavendish, Virginia
Phineas Gage (1823-1860) é um dos primeiros - e mais famosos - casos documentados de lesão cerebral grave. Gage é o caso índice de um indivíduo que sofreu grandes alterações de personalidade após um trauma cerebral. Como tal, ele é uma lenda nos anais da neurologia, que amplamente baseia-se no seu caso para o estudo de pacientes com lesões cerebrais.
Gage era capataz de uma equipe de trabalhadores no ramo de construção de estradas de ferro, sua equipe era responsável por escavar o local determinado para abrir caminho para uma futura ferrovia. Isso envolvia perfurar buracos nas rochas e enchê-los de dinamite. Um fusível então era inserido, e a entrada do buraco era entupida com areia, de modo que a força da explosão seria direcionada para o pedregulho. Isso era feito com uma ferramenta semelhante a uma barra de corvo chamada ferro calcador.
Em 13 de setembro de 1848, Gage com 25 anos, e sua equipe trabalhavam na Rutland and Burlington Railroad, perto de Cavendish, em Vermont. Gage estava se preparando para uma explosão ao preencher um furo com pó explosivo usando um ferro calcador. Enquanto ele estava fazendo isso, uma faísca do ferro calcador acendeu o pó, fazendo com que o ferro fosse impulsionado em alta velocidade diretamente através do crânio de Gage. O ferro entrou sob o osso da face esquerda e saiu pelo topo da cabeça, e mais tarde foi recuperado a cerca de 30 metros do local do acidente.
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Jornal da época informando sobre o acidente de Cage |
O médico que mais tarde o atendeu, John Martin Harlow, notou depois que o ferro calcador tinha 3 pés e 8 polegadas de comprimento e 1,25 polegadas de diâmetro em uma extremidade, não 1,25 polegadas de circunferência, como relatado no relatório do jornal acima. Ele afinou em uma extremidade, ao longo de uma distância de cerca de 1 pé, a uma ponta romba(?) de 0,25 polegadas de diâmetro e pesava mais de 6 kg.
Se Gage perdeu ou não a consciência no momento do acidente não é conhecido, mas notavelmente, ele estava consciente e capaz de andar dentro de alguns minutos após o acidente. Sentou-se então em um carro de bois, no qual foi transportado por três quartos de milha até a pensão onde estava hospedado. Lá, ele foi atendido por Harlow, o médico local. Na pensão, Harlow limpou os ferimentos de Gage, removendo os pequenos fragmentos de ossos, e "organizando" alguns dos maiores fragmentos de crânio que permaneciam presos, mas que tinham sido danificados pelo ferro calcador. O médico então fechou a ferida maior feita no topo da cabeça de Gage com tiras adesivas, e cobriu a abertura com uma compressa molhada.
As feridas de Gage não foram tratadas cirurgicamente, mas foram deixadas abertas para drenarem nos curativos. Poucos dias depois de seu acidente, o cérebro exposto de Gage foi infectado com um "fungo" e ele entrou em um estado de semi coma. Sua família preparou um caixão para ele, mas Gage se recuperou. Duas semanas após o acidente, Harlow drenou pus de um abcesso sob o couro cabeludo de Gage, que de outra forma teria vazado para o cérebro, com conseqüências fatais. Em 1º de janeiro de 1849, Gage estava levando uma vida aparentemente normal.
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Reconstrução digital do Crânio de Gage perfurado pelo ferro calcador |
O relato de Harlow sobre os ferimentos de Gage apareceu como uma carta ao editor do Boston Medical and Surgical Journal. O relato do "caso até então incomparável" contém poucos detalhes neurológicos, e a princípio, foi recebido com ceticismo, porque se pensou que ninguém pudesse sobreviver a uma lesão tão extrema.
Harlow descreve a lesão de Gage da seguinte forma:
" O ferro calcador entrou no crânio, passando pelo lobo esquerdo anterior do cérebro, e fez sua saída na linha medial, na junção das suturas coronais e sagitais, lacerando o seio longitudinal, fraturando os ossos parietais e frontais extensivamente, quebrando porções consideráveis do cérebro, e projetando o globo do olho esquerdo de seu encaixe, por quase a metade do seu diâmetro."
Harlow prossegue descrevendo, como ao examinar Gage, determinou que nenhum fragmento de osso permaneceu dentro do crânio:
".. procurando averiguar se havia outros corpos estranhos lá, passei o dedo indicador por toda a sua extensão, sem a menor resistência, na direção do som [da hemorragia?] na bochecha, que recebeu o outro dedo na boca da mesma maneira."
Um segundo relatório foi publicado em 1850 por Henry J. Bigelow, professor de cirurgia na Universidade de Harvard. Bigelow enfatizou a falta de sintomas de Gage e relatou que Gage estava "bastante recuperado nas faculdades do corpo e da mente". Por causa da descrença com que o relatório de Harlow de 1848 foi tratado; foi apenas 20 anos depois que o relatório de Bigelow passou a ser aceito pela comunidade médica.
De acordo com Harlow, Gage manteve a "posse plena de sua razão" após o acidente, mas sua esposa e outras pessoas próximas a ele logo começaram a notar mudanças dramáticas em sua personalidade. Foi em 1868 que Harlow documentou as "manifestações mentais" das lesões cerebrais de Gage, em um relatório publicado no Bulletin of the Massachusetts Medical Society:
"Seus empreiteiros, que o consideravam o mais eficiente e capaz capataz em seu emprego antes de sua lesão, consideraram a mudança em sua mente tão marcante que não puderam lhe dar seu lugar novamente. Ele é intermitente, irreverente, tolerante às vezes na mais grosseira profanação (que antes não era seu costume), manifestando apenas pouca deferência por seus companheiros. Mostra-se impaciente em se restringir quando entra em conflito com seus desejos, às vezes pertinentemente obstinados, mas caprichosos e vacilantes; pois faz muitos planos futuras, que não são tão bem organizados e logo são abandonados dando lugar a outros planos que parecem mais viáveis. A esse respeito, sua mente foi radicalmente alterada, tão decididamente que seus amigos e conhecidos disseram que ele “não era mais Gage”.
Acima está uma das três figuras do artigo de 1868 de Harlow. A legenda diz: Vista frontal e lateral do crânio, representando a direção em que o ferro atravessava sua cavidade; a aparência atual da linha de fratura, e também o grande fragmento anterior do osso frontal, que foi inteiramente separado, substituído e parcialmente reunido.
Assim, o dano ao córtex frontal de Gage resultou em uma perda completa de inibições sociais, o que muitas vezes o levou a um comportamento inadequado. Com efeito, o ferro calcador realizou uma lobotomia frontal em Gage, mas a natureza exata do dano causado ao seu cérebro tem sido objeto de debate desde que o acidente ocorreu. Isso ocorre porque o dano só pode ser inferido a partir do caminho do ferro através do crânio de Gage, que por sua vez só pode ser inferido a partir do dano ao crânio.
O crânio de Gage foi danificado em três lugares: há uma pequena ferida sob o arco zigomático esquerdo (osso da face) onde o calcador entrou; o outro está localizado no osso orbital na base do crânio por trás da órbita do olho; e a terceira e maior ferida está no topo do crânio, onde o calcador saiu. A ferida de saída era enorme e nunca foi completamente curada. Pode ser visto hoje em Gage como um buraco triangular de forma irregular, com cerca de 5 centímetros de largura e 10 centímetros de circunferência, e outro com cerca de três centímetros de circunferência. Estes são separados por uma das abas do crânio que foi substituída por Harlow ao chegar na pensão de Gage. Como a circunferência da ferida no osso frontal é muito maior do que o diâmetro máximo do calcador, é difícil determinar com precisão a trajetória do ferro e onde ele saiu do crânio de Gage.
Em 1994, Hannah Damasio e seus colegas da Universidade de Iowa usaram técnicas de neuroimagem para reconstruir o crânio de Gage. A conclusão deste estudo foi que o Gage sofreu danos nos córtices pré-frontal esquerdo e direito. Mas de acordo com reconstruções tridimensionais geradas por computador, através de uma tomografia computadorizada de fatia fina do crânio de Gage realizada por
Liebert et al (ver imagem e clipe de filme acima), o dano ao cérebro de Gage estava limitado ao hemisfério esquerdo.
No entanto, o caso de Phineas Gage fez contribuições importantes para a neurologia moderna inicial. A oposição ao relatório de Harlow de 1848 se deu em grande parte à popularidade da frenologia na época. A publicação do relatório de Harlow de 1868 sobre as mudanças de personalidade de Gage foi significativa, pois coincidiu com relatos de outros neurologistas sobre os efeitos de lesões específicas no comportamento.
Essa foi uma época em que a agonia da frenologia se sobrepôs ao nascimento da neuropsicologia moderna. Em 1865, Paul Broca (1824-1880) descreveu o centro da fala no hemisfério esquerdo de pessoas destras; essa região do cérebro, no giro frontal inferior, é agora conhecida como área de Broca. Também na década de 1860, John Hughlings-Jackson (1835-1911) e David Ferrier realizaram (1843-1928) estudos fisiológicos que apontavam para a localização da função cerebral.
Jackson foi o primeiro a supor que as condições psicopatológicas poderiam estar correlacionadas com danos cerebrais. Ele também localizou o córtex auditivo, e em 1864, confirmou as descobertas de Broca de que em pessoas destras a fala estava localizada em uma área específica do lobo temporal esquerdo. Ferrier, um dos primeiros proponentes da localização da função cerebral, usou o caso de Gage como destaque de sua famosa palestra de Goulston em 1878. Na mesma palestra, ele também descreveu experimentos com macacos, o que o levou à conclusão de que:
"Existem certas regiões no córtex para as quais funções definidas podem ser atribuídas; e que os fenômenos das lesões corticais variam de acordo com a sede e também com o caráter deles… a remoção ou destruição… dos lobos ântero-frontais não é acompanhada por nenhum resultado fisiológico definido… E apesar dessa aparente ausência de sintomas fisiológicos, eu podia perceber uma alteração muito definida no caráter e comportamento do animal, apesar de ser difícil afirmar em termos precisos a natureza da mudança ... embora não tenha sido realmente privado de inteligência, eles perderam em toda a aparência, a faculdade de uma observação atenta e inteligente. [Sobre a trajetória do calcador através do cérebro de Gage] ... a ausência de paralisia neste caso está bastante em harmonia com os resultados da fisiologia experimental."
O caso de Gage, portanto, confirmou as descobertas de Ferrier de que os danos ao córtex pré-frontal poderiam resultar em mudanças de personalidade, ao mesmo tempo em que deixavam intactas outras funções neurológicas. O caso de Gage é um dos primeiros que fornece evidências de que o córtex frontal está envolvido na personalidade.
Hoje, o papel do córtex frontal na cognição social e na função executiva está relativamente bem estabelecida; no entanto, essa área de pesquisa ainda não floresceu, e os neurocientistas sabem apenas um pouco mais sobre a relação entre a mente e o cérebro do que os primeiros neurologistas do século XIX.
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Crânio de Gage e ferro calcador que o atingiu expostos no Museu Anatômico de Warren |
Então, o que aconteceu com Phineas Gage? Incapaz de retornar ao trabalho ferroviário após o acidente, Gage teria viajado pela Nova Inglaterra e até pela Europa, com seu ferro calcador tentando ganhar dinheiro. Gage se tornou uma espécie de "exposição viva" no American Museum da Barnum em Nova York por um tempo. No entanto,não apenas a natureza exata do dano neurológico sofrido por Gage, mas também os detalhes de sua vida após o acidente, são contestados até hoje.
Sabe-se que de 1851 até pouco antes de sua morte, Gage trabalhou como cocheiro, primeiro em um estábulo no Dartmouth Inn, em Hanover - New Hampshire, por cerca de 18 meses, e depois no Chile por cerca de 7 anos. Em algum momento de 1859, com sua saúde se deteriorando, Gage passou a morar com a mãe. Ele morreu em San Francisco em 20 de maio de 1860, cerca de 13 anos após o acidente, por complicações decorrentes de convulsões epilépticas. Uma autópsia no cérebro de Gage não foi feita.
Em 1867, o corpo de Gage foi exumado de seu local de sepultamento no cemitério Lone Mountain, em San Francisco. O cunhado de Gage levou o crânio e o calcador para o Dr. Harlow, que morava em Woburn, Massachusetts. Eles agora estão alojados no Warren Anatomical Museum da Harvard University School of Medicine.
References:
Harlow J. M. (1848). Passage of an iron rod through the head. Boston Med. Surg. J.39: 389–393. [PDF]
Ratiu P. & Talos I. F. (2004). The tale of Phineas Gage, digitally remastered. N. Engl. J. Med. 351: e21-e21. [PDF]
(Imagem de direitos autorais: Originalmente da coleção de Jack e Beverly Wilgus; agora no Warren Anatomical Museum, Harvard Medical School)