O diretor do Instituto Pro Bono afirma que a situação no Maranhão está longe de ser incomum e defende penas alternativas para crimes de “menor potencial ofensivo”.
Em 2006, Marcos Fuchs foi convidado a visitar a cadeia pública do Guarujá. O diretor-adjunto da ONG de direitos humanos Conectas e presidente do Instituto Pro Bono havia recebido uma denúncia de que doze menores estavam sendo mantidos na prisão. A visita chocou o advogado, que “descobriu” 400 presos confinados em celas feitas para 68, falta de higiene e sinais de maus-tratos. O caso foi levado por Fuchs e seus colegas ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. “A ação criou constrangimento para o Brasil, e a cadeia foi fechada. Foi o início da minha vida de Graciliano Ramos, à la Memórias do Cárcere”, conta o advogado.
Desde 2009, Fuchs faz parte do Conselho da Comunidade de São Paulo, visitando, periodicamente, os Centros de Detenção Provisórios. Ano passado, foi nomeado membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça – o que o leva, agora, a conhecer presídios também em Brasília, Piauí e Roraima. Seu diagnóstico sobre o sistema prisional brasileiro é claro e definido em uma palavra: “Caos”. Segundo Fuchs, as cadeias são degradantes e, além da falta de assistência jurídica, há um sistema – composto por polícia, promotores e juízes – que corrobora para a superlotação dos presídios: “O que existe hoje é uma política nefasta, errada, de encarceramento em massa. Uma vez presos, essas pessoas não têm acesso à justiça”, afirma. Todos esses fatores, alerta Fuchs, colaboram para o alto índice de reincidência de presos no Brasil, cerca de 60%, segundo o Unicef. “A sociedade tem de estar ciente de que carrega essa hipoteca. O pior investimento que se pode fazer é não investir em um sistema prisional decente.”
A superlotação, segundo Fuchs, é também um dos motivos de perda de controle do Estado dentro dos presídios, como no exemplo mais recente, em Pedrinhas, no Maranhão.
Segundo o advogado, é necessário uma ação conjunta entre sistema judiciário e polícia para diminuir o número de encarceramentos: “Há que se pensar em justiça restaurativa; trabalho comunitário, penas alternativas; usar o direito penal mínimo. Avaliar crimes de pequeno potencial ofensivo, que não devem levar à cadeia”.
A seguir, os melhores momentos da conversa.
Nesses oito anos visitando presídios, qual o seu diagnóstico?
É o caos, uma tragédia, chocante, degradante, um ambiente hostil. Existe tortura, maus tratos, faltam médicos e dentistas. Não há assistência jurídica: nem advogados pro bono nem dativos. É um encarceramento em massa, os presos completamente abandonadas.
Há alguma particularidade no Estado do Maranhão?
Desde 2007, os agentes do sistema penitenciário, a Comissão de Direitos Humanos da OAB e deputados alertavam as autoridades do sistema prisional e a governadora de que havia um barril de pólvora dentro daquela unidade.
De onde vêm a negligência e o abandono?
O que está acontecendo naquele Estado é uma grande violação de direitos humanos. São 62 mortes em 12 meses no sistema prisional, que é de responsabilidade do governo.
Um dos projetos que surgiram durante a CPI carcerária diz respeito à separação dos presos por delito. Acredita nessa medida?
Acho paliativa. O que há nessas unidades é um grande número de jovens entre 18 e 24 anos que cometeram pequenos furtos. Alguns usuários de crack que, em uma batida, acabam sendo levados em flagrante, como traficantes. São pessoas que não deveriam estar presas. Há de se pensar em justiça restaurativa: trabalho comunitário, penas alternativas, usar o direito penal mínimo. Avaliar crimes de pequeno potencial ofensivo. É necessário uma coalizão de polícia, promotores e juízes. O que existe hoje é uma política nefasta, errada, de encarceramento em massa. Uma vez presos, essas pessoas não têm acesso à justiça. Elas vão ser ouvidas na primeira audiência depois de três, quatro meses.
Por quê?
Porque não existe audiência de custódia. Há a Defensoria Pública, onde trabalham verdadeiros heróis, mas é um número muito pequeno. Cada defensor público no fórum da Barra Funda é responsável, em média, por 2.500 processos criminais. É humanamente impossível você fazer habeas corpus, pedir relaxamento, pedir liberdades provisórias.
Os centros de detenção provisória também estão lotados?
Sim. Além da falta de assistência médica, odontológica, higiene, espaço de lazer, de alguma possibilidade de educação, existem presos esperando júri há dez anos. Outros são presos com regime semiaberto que estão cumprindo pena no regime fechado. No Brasil, são 25 mil nessas condições.
Desafogando o número de presos diminui a violência dentro da cadeia?
Diminui a violência na cadeia, e o Estado pode fazer um controle efetivo que hoje, em muitos casos, está nas mãos das facções. A partir do momento em que houver 540 presos na unidade – que é o previsto na construção do CDP, está na lei de execução e é a recomendação da ONU –, o agente prisional será capaz de fazer seu trabalho. E o preso terá a chance de sair de lá menos revoltado. O índice de reincidência de presos no Brasil é por volta de 60%, segundo o Unicef.
Por que tão alto?
O preso sai com dívidas e sem mercado de trabalho. Não existe possibilidade para ele. A sociedade tem de estar ciente de que carrega essa hipoteca. O pior investimento que se pode fazer é não investir em um sistema prisional decente.
Seria o caso de investir em penas alternativas no Brasil?
Elas existem, mas são pouquíssimo aplicadas. Acontece, na maioria dos casos, para quem pode pagar um advogado. Temos a advocacia pro bono, que está tramitando em Brasília em uma comissão presidida pelo Luiz Flávio Borges D’Urso e mais três conselheiros – para ter um novo texto resolutivo sobre advocacia pro bono. O Instituto Pro Bono, com apoio do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, mandou uma sugestão. A ideia é que isso seja levado ao Conselho Federal.
E o projeto de privatização das cadeias, você é a favor?
Sou contra. Preso não é commodity, não é objeto de contrato, não é para dar lucro. Esse modelo americano que estão tentando fazer aqui, em que o Estado vai pagar para o concessionário, transforma o sistema prisional em mercadoria.
Como se resolve, por exemplo, a questão da corrupção dos agentes penitenciários?
O vilão no sistema é a entrada de telefones celulares, que entram mesmo os visitantes passando por revistas vexatórias. Dizem que a outra maneira é via agentes penitenciários. Por isso, defendo um controle mais efetivo. Colocar um scanner de verdade, para uma revista decente. Dá para saber exatamente o que está dentro do corpo de uma pessoa, sem apelar para humilhações. Custa mais caro? Com certeza. Mas o resultado é muito melhor.
Que modelos de sistema prisional existentes no mundo o Brasil poderia seguir?
O modelo holandês, por exemplo. O fórum fica ao lado da unidade; então, o juiz visita semanalmente, caminha pelos corredores, conversa com os presos. Ele leva o sociólogo para entender por que a pessoa está presa, convida um economista para ver o núcleo. Existem ótimas iniciativas.
Os juízes não visitam os presídios aqui no Brasil?
Deveriam visitar mais. Você imagina se os juízes corregedores, os juízes da execução de São Luís, tivessem visitado Pedrinhas constantemente, toda semana. Há uma responsabilidade aí também. Onde estavam os juízes? Aquilo lá era sabido. Havia duas facções se matando ao longo do ano.
E a proposta da APAC, de gestão das penitenciárias pelos próprios presos?
É fantástico. Você tem modelos: Itaúna, em Minas Gerais, por exemplo. Lá existem pouquíssimos agentes penitenciários. O preso acorda no alojamento, toma café, vai trabalhar, ter aula, aprender um trabalho manual. À noite, volta para o alojamento e dorme. Sem um controle tão rigoroso, você tem um número de fugas mínimo e pouquíssimos reincidentes.
E sobre a presença da Polícia Militar dentro da cadeia, Você é favorável?
Sou totalmente contrário. Polícia não é feita para cuidar de preso. Veja o Maranhão, onde os policiais estão sem identificação, apontando espingarda carregada com bala, apavorando os presos. É preciso ter bons agentes penitenciários.
Que outros presídios você também tem informação de estar em situação tão precária quanto Pedrinhas?
Temos relatos de que o Presídio Central de Porto Alegre está desmoronando. É um prédio onde impera a lei das facções, onde o Estado já não existe. E nós visitamos – em 2008, 2009 – unidades no Espírito Santo, onde vimos presos colocados em contêineres. O agente penitenciário abria a porta, e o preso caía desmaiado. Tem também a Casa de Custódia de Viana, onde entrava o carrinho para entregar comida e ele voltava carregando restos de presos.
Atualmente, como está a situação no Espírito Santo?
Está bem melhor. Estive lá faz dois meses e vi que, agora, existem os CDPs. A situação no ES criou um constrangimento enorme para o Estado e para o Brasil. Isso foi levado à ONU, onde exibimos matérias, os contêineres e toda a situação na Casa de Custódia de Viana. /MARILIA NEUSTEIN
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