Por Cezar Roberto Bitencourt
O legislador atribui, num primeiro momento, a condição de vulnerável ao menor de quatorze anos ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. No entanto, já no artigo 218-B depara-se, novamente, com a adjetivação de vulnerável para outra faixa etária, qual seja, menor de dezoito anos, aparentemente, sem qualquer justificativa razoável. Com efeito, são situações completamente diferentes a condição de menor de quatorze anos, comparada à condição do menor de dezoito. Inegavelmente, o legislador ampliou o conceito de vulnerabilidade — que define satisfatoriamente a condição do menor de quatorze anos — para alcançar, incompreensivelmente, o menor de dezoito (art. 218-B).
Na realidade, o legislador utiliza o conceito de vulnerabilidade para diversos enfoques, em condições distintas, sem qualquer justificativa razoável. Esses aspectos autorizam-nos a concluir que há concepções distintas de vulnerabilidade. Na ótica do legislador, devem existir duas espécies ou modalidades de vulnerabilidade, ou seja, uma vulnerabilidade absoluta e outra relativa; aquela se refere ao menor de quatorze anos, configuradora da hipótese de estupro de vulnerável (art. 217-A); esta se refere ao menor de dezoito anos, empregada ao contemplar a figura do favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 218-B). Aliás, os dois dispositivos legais usam a mesma fórmula para contemplar a equiparação de vulnerabilidade, nas respectivas menoridades (quatorze e dezoito anos), qual seja, “ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Nos dois dispositivos, o legislador cria hipóteses de interpretação analógica (ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência) que, no entanto, deve obedecer aos atributos dos respectivos paradigmas[1].
Não se trata, por conseguinte, de “qualquer outra causa”, propriamente, mas de qualquer outra causa que guarde similitude ao paradigma “enfermidade ou deficiência mental”. Assim, exemplificativamente, aproveitar-se do estado de inconsciência da vítima (v. g., desmaio, embriaguez alcoólica — não aquela do Big Brother em que ambos beberam juntos, estado de coma etc.), em que a vítima não possa oferecer resistência. Dito de outra forma, a elementar “que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, aparentemente, com uma abrangência sem limites, é restrita ao seu paradigma, com o qual deve guardar semelhança, por exigência da interpretação analógica e da tipicidade estrita. Com efeito, essa “qualquer outra causa” deve ser similar a “enfermidade ou deficiência mental”, ou seja, algo que reduza ou enfraqueça sua capacidade de discernimento, e, consequentemente, impossibilite oferecer resistência, nos moldes dessas enfermidades mentais.
A substituição da violência presumida pela violência implícita (ou presunção implícita)
Observa-se que o legislador, dissimuladamente, usa os mesmos enunciados que foram utilizados pelo legislador de 1940 para presumir a violência sexual. Constata-se que o legislador anterior foi democraticamente transparente (mesmo em período de ditadura), isto é, destacando expressamente as causas que levavam à presunção de violência (ver o revogado art. 224 do CP de 1940); curiosamente, no entanto, quando nosso ordenamento jurídico deve redemocratizar-se sob os auspícios de um novo modelo de Estado Constitucional e Democrático de Direito, o legislador contemporâneo usa a mesma presunção de violência, porém, disfarçadamente, na ineficaz pretensão de ludibriar o intérprete e o aplicador da lei. “A proteção conferida — profetiza Nucci — aos menores de quatorze anos, considerados vulneráveis, continuará a despertar debate doutrinário e jurisprudencial[2]. O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência”[3]. Trata-se, inequivocamente, de uma tentativa dissimulada de estancar a orientação jurisprudencial que se consagrou no Supremo Tribunal Federal sobre a relatividade da presunção de violência contida no dispositivo revogado (art. 224). Nessa linha, merece destaque parte do antológico acórdão do ministro Marco Aurélio, que pontificou: “A presunção não é absoluta, cedendo às peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes, como reconhecido no seu depoimento e era de conhecimento público”[4].
Essa pretensão do legislador fica muito clara quando se observa que, na definição do estupro de vulnerável, ignorando o enunciado incriminador do artigo 213, adotou as elementares do revogado crime de sedução “ter conjunção carnal” (antigo art. 217) e substituiu a violência ou grave ameaça reais, do crime de estupro, pela condição de vulnerável do ofendido, qual seja, menor de quatorze anos (caput) ou deficiente mental (§ 1º), e cominando pena de oito a quinze anos de reclusão, nada mais é do que uma presunção implícita de violência. Essa presunção implícita, inconfessadamente utilizada pelo legislador, não afasta aquela discussão sobre a sua relatividade, naquela linha de que a mudança do rótulo não altera a substância. Reconhecendo a relatividade da presunção de violência contida no revogado artigo 224, no mesmo acórdão, prosseguiu o ministro Marco Aurélio: “Nos nossos dias não há crianças, mas moças com doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definidos a ponto de vislumbrarem toda a sorte de consequências que lhes podem advir”[5].
Embora se tenha utilizado outra técnica legislativa, qual seja, suprimir a previsão expressa da presunção de violência, certamente, a interpretação mais racional deve seguir o mesmo caminho que vinha trilhando a orientação do STF, qual seja, examinar caso a caso, para se constatar, in concreto, as condições pessoais de cada vítima, o seu grau de conhecimento e discernimento da conduta humana que ora se incrimina, ante a extraordinária evolução comportamental da moral sexual contemporânea. Nessas condições, é impossível não concordar com a conclusão paradigmática do ministro Marco Aurélio: “A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pela dessemelhança”.
Dessa forma, impõe-se a conclusão de que a presunção de vulnerabilidade consagrada no novo texto legal, a despeito da dissimulação do legislador, é relativa, recomendando avaliação casuística. No entanto, para realizarmos uma melhor interpretação dessa peculiaridade, recomenda-se ter presente que presunção absoluta ou relativa não se confunde com vulnerabilidade absoluta ou relativa, como demonstraremos adiante.
Distinção entre presunção absoluta e relativa e vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa
Deve-se atentar para o seguinte: afastada a vulnerabilidade absoluta pode restar, ainda, a vulnerabilidade relativa, que não se confunde com presunção relativa de vulnerabilidade, e que, nem por isso, pode ser desprezada. Ou seja, são dois aspectos absolutamente diferentes: uma coisa é presunção absoluta e presunção relativa de vulnerabilidade; outra coisa, completamente diferente, é a vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa, que resultam de dois juízos valorativos distintos. Vejamos cada uma delas:
1) Presunção absoluta e presunção relativa de vulnerabilidade
Questiona-se aqui tão somente a natureza da presunção legal (expressa ou implícita, não importa), ou seja, se é caso de presunção absoluta ou de presunção relativa, independentemente da gravidade ou natureza da própria vulnerabilidade, que, claramente, não é objeto de exame nesse juízo valorativo.
(a) presunção absoluta de vulnerabilidade — pela presunção absoluta admite-se que a vítima é, indiscutivelmente, vulnerável e ponto final; não se questiona esse aspecto, ele é incontestável, trata-se de presunção iure et iure, que não admite prova em sentido contrário; (b) presunção relativa de vulnerabilidade — a vítima pode ser vulnerável, ou pode não ser, devendo-se examinar casuisticamente a situação para constatar se tal circunstância pessoal se faz presente nela, ou não. Em outros termos, a vulnerabilidade deve ser comprovada, sob pena de ser desconsiderada, admitindo, por conseguinte, prova em sentido contrário, tratando-se, portanto, e presunção juris tantum.
Observe-se que, nessas duas hipóteses, não se questiona, repetindo, não se discute o grau ou intensidade da vulnerabilidade, mas tão somente se a presunção é absoluta ou relativa, ou seja, se a presunção admite prova em sentido contrário ou não.
2) Vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa
Aqui o questionamento é outro, isto é, não se discute se se trata de presunção absoluta ou de presunção relativa de vulnerabilidade, como na hipótese anterior, pois essa avaliação já ficou para trás, está superada; parte-se, portanto, do pressuposto que a vulnerabilidade existe, mas não se sabe o seu grau, intensidade ou extensão. Diríamos que se trata agora de um segundo juízo de cognição: no primeiro, avalia-se a natureza da presunção se relativa ou absoluta; neste segundo juízo, valora-se o quantum de vulnerabilidade a vítima apresenta. E, seguindo-se a linha do legislador que a previu para faixas etárias distintas — menor de 14 anos e menor de dezoito — elas apresentam, inegavelmente, gravidades e consequências distintas. Mas, mais que isso, podem apresentar-se em graus distintos em uma mesma faixa etária, e, também por isso, precisam ser valoradas casuisticamente.
Em outros termos, pode ocorrer, por exemplo, que se trate de presunção absoluta de vulnerabilidade, mas que o exame in concreto das circunstâncias demonstrem que, a despeito de não se poder discutir a presunção (ou já superada esta), a vulnerabilidade que o caso apresenta é de relativa intensidade; por outro lado, na hipótese do artigo 218-B, por exemplo, se reconhece que estamos diante de uma presunção relativa, mas o exame concreto demonstra que a vulnerabilidade constatada é absoluta, isto é, completa, apresenta-se em seu grau máximo! Com efeito, embora pareça, à primeira vista, um simples jogo de palavras, procuramos demonstrar que são realidades absolutamente distintas e, mais que isso: podem coincidir presunção absoluta com vulnerabilidade relativa e presunção relativa com vulnerabilidade absoluta, sem que isso represente nenhum paradoxo. Dito de outra forma, uma coisa não implica em outra, ou seja, cada situação casuística exige a realização de duplo juízo valorativo, um sobre a natureza da presunção e outro sobre ou grau ou intensidade da própria vulnerabilidade.
Onde estamos querendo chegar com esse raciocínio? Haveria alguma razão prática ou pragmática para este nosso raciocínio ou será uma questão puramente acadêmica? Pois, na nossa concepção trata-se de questão de extrema relevância, com graves e díspares consequências práticas, considerando que o legislador tratou da vulnerabilidade em graus distintos, isto é, para menores de catorze anos e para menores de dezoito, que, sabidamente, não têm o mesmo nível de intensidade, aliás, como é próprio da natureza humana, em que nada, ou quase nada (além da morte) é absoluto ou definitivo.
Vejamos o problema do crime de estupro de vulnerável, em que a pena cominada é de oito a quinze anos de reclusão, diferentemente do estupro tradicional, praticado com violência real ou grave ameaça, em que a pena é de seis a dez anos. Independentemente da discussão sobre a natureza da presunção — absoluta ou relativa — quer nos parecer que ainda mais importante que isso é o segundo juízo, qual seja, o grau, a intensidade ou gravidade da vulnerabilidade apresentada. Desnecessário enfatizar que existem pessoas mais vulneráveis, muito vulneráveis, altamente vulneráveis, como também existem pessoas (maiores ou menores) menos vulneráveis, ou, como preferimos nós, relativamente vulneráveis.
Certamente, quando o legislador previu o estupro de vulnerável, sem tipificar o “constrangimento carnal”, mas tão somente a prática sexual com menor de 14 anos ou deficiente ou enfermo mental, considerou como sujeito passivo alguém absolutamente vulnerável, ou seja, portador de vulnerabilidade máxima, extrema, superlativa mesmo. A suavidade da conduta tipificada — ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso — contrastante com a pena cominada (oito a quinze anos de reclusão), indiscutivelmente, se destina a “violência sexual” contra vítima altamente vulnerável. E é natural que assim seja! Mas a realidade prática pode não se apresentar com toda essa gravidade, ainda que se revele intolerável e, por isso mesmo, também grave e merecedora da proteção penal. É possível, em outros termos, que tenhamos, in concreto, uma vulnerabilidade relativa, mesmo em sujeitos com idade ou deficiências previstas nesse dispositivo legal, ou seja, que por circunstâncias ou peculiaridades pessoais ou particulares não é de todo vulnerável, isto é, não pode ser considerado absolutamente vulnerável.
Com efeito, considerando que a gravidade ou intensidade da vulnerabilidade não se confunde com a sua presunção — absoluta ou relativa — precisamos desdobrar essa interpretação para constatarmos que o afastamento da presunção absoluta, nem sempre deve afastar a responsabilização penal do autor do fato. Por isso, a necessidade desse segundo juízo de valoração, qual seja, se existe realmente alguma vulnerabilidade, admitindo-a, deve-se verificar o grau dessa dita vulnerabilidade. Vamos admitir, exemplificativamente, que, in concreto, pelas circunstâncias do caso — menor corrompida, com experiência sexual das ruas, prostituída etc — chegue-se a conclusão que referida menor não se enquadra na concepção de alguém absolutamente vulnerável, isto é, não apresenta aquele grau de vulnerabilidade (absoluta) capaz de justificar a punição tão grave como a prevista no artigo 217-A — estupro de vulnerável —, que, sabidamente, se trata de pena mais grave que a prevista para o crime de homicídio (mínima de seis anos).
No entanto, o fato de ser menor de catorze anos, desamparada social, material e culturalmente, sem estrutura familiar, espécie de menor de rua mesmo, abandonada à própria sorte, não se pode negar que se trata de menor vulnerável, no caso — socialmente vulnerável — e, por conseguinte, merecedora inclusive da proteção penal, pois o legislador não identifica e nem restringe a determinado tipo de vulnerabilidade. Por outro lado, tampouco se pode ignorar que a prática sexual com menor, nessas circunstâncias, também constitui uma forma de violência, no caso, sexual. Dito de outra forma, há, inegavelmente, constrangimento à prática sexual de menor socialmente vulnerável. Estamos de acordo que não sirva para a tipificação exigida pelo artigo 217-A (estupro de vulnerável), mas, por outro lado, por se tratar de uma violência implícita, certamente, encontrará respaldo na previsão contida no artigo 213 do Código Penal, onde a cominação penal é mais consentânea com esse tipo de realidade social perversa, observando, inclusive, o princípio da proporcionalidade, cuja pena ainda é bastante grave, qual seja, de seis a dez anos de reclusão.
Concluindo, estamos sustentando, enfim, a possibilidade de desclassificar o crime de estupro de vulnerável para o crime de estupro tradicional (art. 213), pelo constrangimento à prática sexual, mediante violência (ainda que implícita), quando se tratar de menor corrompida, prostituída, abandonada ou carente (vulnerabilidade social), pois, na nossa concepção, praticar sexo com menor, nessas circunstâncias, importa, inegavelmente, constrangê-la, aproveitando-se dessa circunstância — vulnerabilidade social — que a impede de resistir. Logicamente, é indispensável que o sujeito ativo tenha consciência dessa situação de vulnerabilidade social da pretensa vítima.
[1] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, vol. 4, p.
[2] .Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, vol. 4, p.
[3] Nucci, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 37.
[4] HC. STF 73.662/MG, 2ª T. Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, 21.05.2005.
[5] HC. STF 73.662/MG, 2ª T. Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, 21.05.2005.*Cezar Roberto Bitencourt é advogado criminalista, professor do programa de pós-graduação da PUC-RS, doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha, procurador de Justiça aposentado.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
O legislador atribui, num primeiro momento, a condição de vulnerável ao menor de quatorze anos ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência. No entanto, já no artigo 218-B depara-se, novamente, com a adjetivação de vulnerável para outra faixa etária, qual seja, menor de dezoito anos, aparentemente, sem qualquer justificativa razoável. Com efeito, são situações completamente diferentes a condição de menor de quatorze anos, comparada à condição do menor de dezoito. Inegavelmente, o legislador ampliou o conceito de vulnerabilidade — que define satisfatoriamente a condição do menor de quatorze anos — para alcançar, incompreensivelmente, o menor de dezoito (art. 218-B).
Na realidade, o legislador utiliza o conceito de vulnerabilidade para diversos enfoques, em condições distintas, sem qualquer justificativa razoável. Esses aspectos autorizam-nos a concluir que há concepções distintas de vulnerabilidade. Na ótica do legislador, devem existir duas espécies ou modalidades de vulnerabilidade, ou seja, uma vulnerabilidade absoluta e outra relativa; aquela se refere ao menor de quatorze anos, configuradora da hipótese de estupro de vulnerável (art. 217-A); esta se refere ao menor de dezoito anos, empregada ao contemplar a figura do favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual (art. 218-B). Aliás, os dois dispositivos legais usam a mesma fórmula para contemplar a equiparação de vulnerabilidade, nas respectivas menoridades (quatorze e dezoito anos), qual seja, “ou a quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. Nos dois dispositivos, o legislador cria hipóteses de interpretação analógica (ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência) que, no entanto, deve obedecer aos atributos dos respectivos paradigmas[1].
Não se trata, por conseguinte, de “qualquer outra causa”, propriamente, mas de qualquer outra causa que guarde similitude ao paradigma “enfermidade ou deficiência mental”. Assim, exemplificativamente, aproveitar-se do estado de inconsciência da vítima (v. g., desmaio, embriaguez alcoólica — não aquela do Big Brother em que ambos beberam juntos, estado de coma etc.), em que a vítima não possa oferecer resistência. Dito de outra forma, a elementar “que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, aparentemente, com uma abrangência sem limites, é restrita ao seu paradigma, com o qual deve guardar semelhança, por exigência da interpretação analógica e da tipicidade estrita. Com efeito, essa “qualquer outra causa” deve ser similar a “enfermidade ou deficiência mental”, ou seja, algo que reduza ou enfraqueça sua capacidade de discernimento, e, consequentemente, impossibilite oferecer resistência, nos moldes dessas enfermidades mentais.
A substituição da violência presumida pela violência implícita (ou presunção implícita)
Observa-se que o legislador, dissimuladamente, usa os mesmos enunciados que foram utilizados pelo legislador de 1940 para presumir a violência sexual. Constata-se que o legislador anterior foi democraticamente transparente (mesmo em período de ditadura), isto é, destacando expressamente as causas que levavam à presunção de violência (ver o revogado art. 224 do CP de 1940); curiosamente, no entanto, quando nosso ordenamento jurídico deve redemocratizar-se sob os auspícios de um novo modelo de Estado Constitucional e Democrático de Direito, o legislador contemporâneo usa a mesma presunção de violência, porém, disfarçadamente, na ineficaz pretensão de ludibriar o intérprete e o aplicador da lei. “A proteção conferida — profetiza Nucci — aos menores de quatorze anos, considerados vulneráveis, continuará a despertar debate doutrinário e jurisprudencial[2]. O nascimento de tipo penal inédito não tornará sepulta a discussão acerca do caráter relativo ou absoluto da anterior presunção de violência”[3]. Trata-se, inequivocamente, de uma tentativa dissimulada de estancar a orientação jurisprudencial que se consagrou no Supremo Tribunal Federal sobre a relatividade da presunção de violência contida no dispositivo revogado (art. 224). Nessa linha, merece destaque parte do antológico acórdão do ministro Marco Aurélio, que pontificou: “A presunção não é absoluta, cedendo às peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros rapazes, como reconhecido no seu depoimento e era de conhecimento público”[4].
Essa pretensão do legislador fica muito clara quando se observa que, na definição do estupro de vulnerável, ignorando o enunciado incriminador do artigo 213, adotou as elementares do revogado crime de sedução “ter conjunção carnal” (antigo art. 217) e substituiu a violência ou grave ameaça reais, do crime de estupro, pela condição de vulnerável do ofendido, qual seja, menor de quatorze anos (caput) ou deficiente mental (§ 1º), e cominando pena de oito a quinze anos de reclusão, nada mais é do que uma presunção implícita de violência. Essa presunção implícita, inconfessadamente utilizada pelo legislador, não afasta aquela discussão sobre a sua relatividade, naquela linha de que a mudança do rótulo não altera a substância. Reconhecendo a relatividade da presunção de violência contida no revogado artigo 224, no mesmo acórdão, prosseguiu o ministro Marco Aurélio: “Nos nossos dias não há crianças, mas moças com doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria delas já conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades, ainda que não possuam escala de valores definidos a ponto de vislumbrarem toda a sorte de consequências que lhes podem advir”[5].
Embora se tenha utilizado outra técnica legislativa, qual seja, suprimir a previsão expressa da presunção de violência, certamente, a interpretação mais racional deve seguir o mesmo caminho que vinha trilhando a orientação do STF, qual seja, examinar caso a caso, para se constatar, in concreto, as condições pessoais de cada vítima, o seu grau de conhecimento e discernimento da conduta humana que ora se incrimina, ante a extraordinária evolução comportamental da moral sexual contemporânea. Nessas condições, é impossível não concordar com a conclusão paradigmática do ministro Marco Aurélio: “A presunção de violência prevista no artigo 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. Os meios de comunicação de um modo geral e, particularmente, a televisão são responsáveis pela divulgação maciça de informações, não as selecionando sequer de acordo com medianos e saudáveis critérios que pudessem atender às menores exigências de uma sociedade marcada pela dessemelhança”.
Dessa forma, impõe-se a conclusão de que a presunção de vulnerabilidade consagrada no novo texto legal, a despeito da dissimulação do legislador, é relativa, recomendando avaliação casuística. No entanto, para realizarmos uma melhor interpretação dessa peculiaridade, recomenda-se ter presente que presunção absoluta ou relativa não se confunde com vulnerabilidade absoluta ou relativa, como demonstraremos adiante.
Distinção entre presunção absoluta e relativa e vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa
Deve-se atentar para o seguinte: afastada a vulnerabilidade absoluta pode restar, ainda, a vulnerabilidade relativa, que não se confunde com presunção relativa de vulnerabilidade, e que, nem por isso, pode ser desprezada. Ou seja, são dois aspectos absolutamente diferentes: uma coisa é presunção absoluta e presunção relativa de vulnerabilidade; outra coisa, completamente diferente, é a vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa, que resultam de dois juízos valorativos distintos. Vejamos cada uma delas:
1) Presunção absoluta e presunção relativa de vulnerabilidade
Questiona-se aqui tão somente a natureza da presunção legal (expressa ou implícita, não importa), ou seja, se é caso de presunção absoluta ou de presunção relativa, independentemente da gravidade ou natureza da própria vulnerabilidade, que, claramente, não é objeto de exame nesse juízo valorativo.
(a) presunção absoluta de vulnerabilidade — pela presunção absoluta admite-se que a vítima é, indiscutivelmente, vulnerável e ponto final; não se questiona esse aspecto, ele é incontestável, trata-se de presunção iure et iure, que não admite prova em sentido contrário; (b) presunção relativa de vulnerabilidade — a vítima pode ser vulnerável, ou pode não ser, devendo-se examinar casuisticamente a situação para constatar se tal circunstância pessoal se faz presente nela, ou não. Em outros termos, a vulnerabilidade deve ser comprovada, sob pena de ser desconsiderada, admitindo, por conseguinte, prova em sentido contrário, tratando-se, portanto, e presunção juris tantum.
Observe-se que, nessas duas hipóteses, não se questiona, repetindo, não se discute o grau ou intensidade da vulnerabilidade, mas tão somente se a presunção é absoluta ou relativa, ou seja, se a presunção admite prova em sentido contrário ou não.
2) Vulnerabilidade absoluta e vulnerabilidade relativa
Aqui o questionamento é outro, isto é, não se discute se se trata de presunção absoluta ou de presunção relativa de vulnerabilidade, como na hipótese anterior, pois essa avaliação já ficou para trás, está superada; parte-se, portanto, do pressuposto que a vulnerabilidade existe, mas não se sabe o seu grau, intensidade ou extensão. Diríamos que se trata agora de um segundo juízo de cognição: no primeiro, avalia-se a natureza da presunção se relativa ou absoluta; neste segundo juízo, valora-se o quantum de vulnerabilidade a vítima apresenta. E, seguindo-se a linha do legislador que a previu para faixas etárias distintas — menor de 14 anos e menor de dezoito — elas apresentam, inegavelmente, gravidades e consequências distintas. Mas, mais que isso, podem apresentar-se em graus distintos em uma mesma faixa etária, e, também por isso, precisam ser valoradas casuisticamente.
Em outros termos, pode ocorrer, por exemplo, que se trate de presunção absoluta de vulnerabilidade, mas que o exame in concreto das circunstâncias demonstrem que, a despeito de não se poder discutir a presunção (ou já superada esta), a vulnerabilidade que o caso apresenta é de relativa intensidade; por outro lado, na hipótese do artigo 218-B, por exemplo, se reconhece que estamos diante de uma presunção relativa, mas o exame concreto demonstra que a vulnerabilidade constatada é absoluta, isto é, completa, apresenta-se em seu grau máximo! Com efeito, embora pareça, à primeira vista, um simples jogo de palavras, procuramos demonstrar que são realidades absolutamente distintas e, mais que isso: podem coincidir presunção absoluta com vulnerabilidade relativa e presunção relativa com vulnerabilidade absoluta, sem que isso represente nenhum paradoxo. Dito de outra forma, uma coisa não implica em outra, ou seja, cada situação casuística exige a realização de duplo juízo valorativo, um sobre a natureza da presunção e outro sobre ou grau ou intensidade da própria vulnerabilidade.
Onde estamos querendo chegar com esse raciocínio? Haveria alguma razão prática ou pragmática para este nosso raciocínio ou será uma questão puramente acadêmica? Pois, na nossa concepção trata-se de questão de extrema relevância, com graves e díspares consequências práticas, considerando que o legislador tratou da vulnerabilidade em graus distintos, isto é, para menores de catorze anos e para menores de dezoito, que, sabidamente, não têm o mesmo nível de intensidade, aliás, como é próprio da natureza humana, em que nada, ou quase nada (além da morte) é absoluto ou definitivo.
Vejamos o problema do crime de estupro de vulnerável, em que a pena cominada é de oito a quinze anos de reclusão, diferentemente do estupro tradicional, praticado com violência real ou grave ameaça, em que a pena é de seis a dez anos. Independentemente da discussão sobre a natureza da presunção — absoluta ou relativa — quer nos parecer que ainda mais importante que isso é o segundo juízo, qual seja, o grau, a intensidade ou gravidade da vulnerabilidade apresentada. Desnecessário enfatizar que existem pessoas mais vulneráveis, muito vulneráveis, altamente vulneráveis, como também existem pessoas (maiores ou menores) menos vulneráveis, ou, como preferimos nós, relativamente vulneráveis.
Certamente, quando o legislador previu o estupro de vulnerável, sem tipificar o “constrangimento carnal”, mas tão somente a prática sexual com menor de 14 anos ou deficiente ou enfermo mental, considerou como sujeito passivo alguém absolutamente vulnerável, ou seja, portador de vulnerabilidade máxima, extrema, superlativa mesmo. A suavidade da conduta tipificada — ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso — contrastante com a pena cominada (oito a quinze anos de reclusão), indiscutivelmente, se destina a “violência sexual” contra vítima altamente vulnerável. E é natural que assim seja! Mas a realidade prática pode não se apresentar com toda essa gravidade, ainda que se revele intolerável e, por isso mesmo, também grave e merecedora da proteção penal. É possível, em outros termos, que tenhamos, in concreto, uma vulnerabilidade relativa, mesmo em sujeitos com idade ou deficiências previstas nesse dispositivo legal, ou seja, que por circunstâncias ou peculiaridades pessoais ou particulares não é de todo vulnerável, isto é, não pode ser considerado absolutamente vulnerável.
Com efeito, considerando que a gravidade ou intensidade da vulnerabilidade não se confunde com a sua presunção — absoluta ou relativa — precisamos desdobrar essa interpretação para constatarmos que o afastamento da presunção absoluta, nem sempre deve afastar a responsabilização penal do autor do fato. Por isso, a necessidade desse segundo juízo de valoração, qual seja, se existe realmente alguma vulnerabilidade, admitindo-a, deve-se verificar o grau dessa dita vulnerabilidade. Vamos admitir, exemplificativamente, que, in concreto, pelas circunstâncias do caso — menor corrompida, com experiência sexual das ruas, prostituída etc — chegue-se a conclusão que referida menor não se enquadra na concepção de alguém absolutamente vulnerável, isto é, não apresenta aquele grau de vulnerabilidade (absoluta) capaz de justificar a punição tão grave como a prevista no artigo 217-A — estupro de vulnerável —, que, sabidamente, se trata de pena mais grave que a prevista para o crime de homicídio (mínima de seis anos).
No entanto, o fato de ser menor de catorze anos, desamparada social, material e culturalmente, sem estrutura familiar, espécie de menor de rua mesmo, abandonada à própria sorte, não se pode negar que se trata de menor vulnerável, no caso — socialmente vulnerável — e, por conseguinte, merecedora inclusive da proteção penal, pois o legislador não identifica e nem restringe a determinado tipo de vulnerabilidade. Por outro lado, tampouco se pode ignorar que a prática sexual com menor, nessas circunstâncias, também constitui uma forma de violência, no caso, sexual. Dito de outra forma, há, inegavelmente, constrangimento à prática sexual de menor socialmente vulnerável. Estamos de acordo que não sirva para a tipificação exigida pelo artigo 217-A (estupro de vulnerável), mas, por outro lado, por se tratar de uma violência implícita, certamente, encontrará respaldo na previsão contida no artigo 213 do Código Penal, onde a cominação penal é mais consentânea com esse tipo de realidade social perversa, observando, inclusive, o princípio da proporcionalidade, cuja pena ainda é bastante grave, qual seja, de seis a dez anos de reclusão.
Concluindo, estamos sustentando, enfim, a possibilidade de desclassificar o crime de estupro de vulnerável para o crime de estupro tradicional (art. 213), pelo constrangimento à prática sexual, mediante violência (ainda que implícita), quando se tratar de menor corrompida, prostituída, abandonada ou carente (vulnerabilidade social), pois, na nossa concepção, praticar sexo com menor, nessas circunstâncias, importa, inegavelmente, constrangê-la, aproveitando-se dessa circunstância — vulnerabilidade social — que a impede de resistir. Logicamente, é indispensável que o sujeito ativo tenha consciência dessa situação de vulnerabilidade social da pretensa vítima.
[1] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, vol. 4, p.
[2] .Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, vol. 4, p.
[3] Nucci, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, p. 37.
[4] HC. STF 73.662/MG, 2ª T. Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, 21.05.2005.
[5] HC. STF 73.662/MG, 2ª T. Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, 21.05.2005.*Cezar Roberto Bitencourt é advogado criminalista, professor do programa de pós-graduação da PUC-RS, doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha, procurador de Justiça aposentado.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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