De acordo com o previsto pelo Código Penal brasileiro, o parecer do exame criminológico deveria ser emitido quando o preso ingressa no sistema prisional com o objetivo da individualização de sua pena (“Artigo 34: O condenado será submetido, no início do cumprimento da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução”). A Lei no 10.792/2003, de 1º de dezembro de 2003, entre outras providências, alterou o Artigo 112 da Lei de Execução Penal (Lei no 7.210, de 11 de junho de 1984), passando a estabelecer o que segue: “A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão; § 1o A decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do Ministério Público e do defensor; § 2o Idêntico procedimento será adotado na concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas, respeitados os prazos previstos nas normas vigentes”.
Após tal mudança na Lei de Execução Penal, estabeleceu-se importante discussão doutrinária acerca da admissibilidade do exame criminológico por ocasião da progressão de regime prisional. Recentemente, o ministro Marco Aurélio Mello valeu-se de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e indeferiu o pedido de liminar formulado nohabeas corpus 106678, no qual Benedito dos Santos, condenado pela Justiça do Espírito Santo à pena unificada de 40 anos e 10 meses de reclusão e multa pela prática de vários crimes, pedia a progressão no cumprimento da pena, do regime fechado para o semi-aberto, sem ser submetido à realização de exame criminológico. Sua defesa alegava que o condenado já tinha tempo suficiente para ter o benefício da progressão do regime, defendendo ainda a posição que a Lei nº 10.792/2003 suspendera a obrigatoriedade da realização do exame criminológico para obtenção da progressão do regime prisional. A despeito disso, no entanto, o juiz da Segunda Vara Criminal da Comarca de Viana, no Estado do Espírito Santo, negou o pedido de habeas corpus, pois teve o entendimento da necessidade do exame criminológico no caso em questão. Por conta disso, a defesa recorreu sucessivamente para o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo e para o Superior Tribunal de Justiça, porém ambas as instâncias negaram o pedido. No entendimento dessas cortes, a Lei nº 10.782/2003 não retirou do juiz de execução penal a faculdade de condicionar a concessão do benefício à realização do exame criminológico em decisão fundamentada.
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, tal qual o Superior Tribunal de Justiça, acabou também por ratificar a posição do juiz de execução penal em decisão acerca da necessidade de realização de exame criminológico para progressão de pena, porém acatando a decisão inicial do Juízo pela ausência de necessidade do referido exame. Assim, por maioria, o Superior Tribunal de Justiça concedeu habeas corpus em favor de um condenado ao qual havia sido negado o direito de progredir de regime prisional, por não ter sido submetido à realização de exame criminológico. De acordo com o desembargador Adilson Vieira Macabu, convocado para o caso, o exame pode ser necessário em algumas situações, no entanto já não é mais obrigatório desde 2003, nos termos da Lei de Execução Penal em vigor. O habeas corpus foi solicitado em favor de um condenado que conseguira do juiz da execução de seu caso decisão favorável à progressão de seu regime de cumprimento da pena. De acordo com o juiz, a realização do exame criminológico não era necessária para o caso em questão, pois não havia relato de nenhum fato que o justificasse. Corroborando sua decisão, a direção do presídio informara que o condenado, cumprindo pena desde 2003, nunca cometera qualquer infração disciplinar e voltara de todas as saídas temporárias. No entanto, a decisão do juiz foi reconsiderada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que, ao avaliar recurso do Ministério Público, determinou o regresso do condenado ao regime fechado até que se comprovasse, por meio de exame criminológico, o preenchimento dos possíveis requisitos para a progressão. A decisão final acabou sendo conferida pelos ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Dois componentes do Tribunal consideraram que o exame deveria mesmo ser exigido, pois se trata de meio eficiente para avaliar as condições pessoais do preso. Entretanto, autor do voto vencedor, o desembargador Adilson Macabu considerou que o atendimento dos requisitos subjetivos da progressão não depende, necessariamente, dessa entrevista. De acordo com seu entendimento do caso, a decisão do juiz de primeiro grau foi suficientemente fundamentada nas informações favoráveis oferecidas pela direção do presídio. Quanto ao requisito objetivo, observou que o preso já havia cumprido um sexto da pena, conforme exige a lei. Ainda de acordo com suas considerações, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo estaria baseada apenas na gravidade do crime, “em flagrante contrariedade” com o disposto no artigo 112 da Lei de Execução Penal, cuja redação atual foi dada pela Lei n. 10.792/2003, o que não obriga mais a necessidade da realização do exame criminológico com o objetivo de progressão do regime de pena. O desembargador afirmou o que segue: “Não afasto a possibilidade de realização do referido exame e não vejo óbice à sua realização, quando necessário. Por outro lado, dentro da nossa atual sistemática legal, tal exame não é mais obrigatório”.
Assim sendo, as instâncias recursais superiores, tais como o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, têm se posicionado de modo a deixar a decisão para a solicitação do exame criminológico para progressão de pena a cargo dos juízes da execução penal, devendo ser considerada caso a caso sua necessidade, por meio de decisão fundamentada por parte do magistrado.
No entanto, em meio a tal situação, o Conselho Federal de Psicologia editou a Resolução nº 009, de 29 de junho de 2010, que regulamenta a atuação do psicólogo no sistema prisional, dispondo o seguinte: "conforme indicado nos arts. 6º e 112 da Lei n. 10.792/2003 (que alterou a Lei n. 7.201/1984), é vedado ao psicólogo que atua nos estabelecimentos prisionais realizar exame criminológico e participar de ações e/ou decisões que envolvam práticas de caráter punitivo e disciplinar, bem como documento escrito oriundo da avaliação psicológica com fins de subsidiar decisão judicial durante a execução da pena do sentenciado". O Conselho Federal de Psicologia em nota esclarece que “a Resolução permite ao psicólogo, em sua atuação no sistema prisional, realizar atividades com vistas à individualização da pena quando o apenado ingressa no sistema prisional – estas atividades, que incluem as avaliativas, podem ser ponto de partida para a ação profissional do psicólogo no sistema prisional, sendo, portanto, distintas do exame criminológico. Quando houver determinação judicial, o psicólogo deve explicitar os limites éticos de sua atuação ao juízo e poderá elaborar um documento objetivo, informativo e resumido, com foco na análise contextual da situação vivenciada pelo sujeito na instituição e nos projetos terapêuticos por ele experenciados durante a execução da pena (Art. 4º, Parágrafo único da Res. nº 009/2010)”. Segundo ainda o Conselho Federal de Psicologia “a nova redação do Artigo 112 da Lei exclui a necessidade de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico para motivar e preceder a decisão de conceder a progressão de pena. A Resolução do CFP, portanto, adequou a prática psicológica à legislação nacional”. No entanto, após várias contestações, o Conselho Federal de Psicologia suspendeu os efeitos da Resolução nº 009/2010, pelo prazo de seis meses, a partir de 02 de setembro de 2010, por meio da Resolução nº 019/2010. Tal decisão ocorreu pelo Conselho acatar a Recomendação da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, que requereu a suspensão das Resoluções nº 009/2010, sob pena de que o Conselho Federal de Psicologia responda à Ação Civil Pública. No entanto, o mesmo Conselho relata que tomou a decisão de suspender provisoriamente sua Resolução nº 009/2010, na expectativa de poder defendê-la em audiência pública indicada pela Procuradoria do Rio Grande do Sul quando da Recomendação da suspensão. Assim, parece que toda a polêmica que cerca a realização do exame criminológico ainda está longe de terminar.
Autores:
Quirino Cordeiro (1)
Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente do Departamento de Psiquiatria e
Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor Técnico do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental de Franco da Rocha
do Complexo Hospitalar do Juquery / Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo.
Ainda Sobre o Exame Criminológico
Na edição de maio deste ano do periódico “Psychiatry Online Brazil”, escrevemos um texto sobre as controvérsias que cercam o exame criminológico no contexto da execução penal no país. À ocasião, discutimos a Resolução nº 09 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), de 29 de junho de 2010, que regulamentava a atuação do psicólogo no sistema prisional. Tal decisão do Conselho dispunha o que segue: “conforme indicado nos arts. 6º e 112 da Lei n. 10.792/2003 (que alterou a Lei n. 7.201/1984), é vedado ao psicólogo que atua nos estabelecimentos prisionais realizar exame criminológico e participar de ações e/ou decisões que envolvam práticas de caráter punitivo e disciplinar, bem como documento escrito oriundo da avaliação psicológica com fins de subsidiar decisão judicial durante a execução da pena do sentenciado”. O CFP em nota esclarecia que “a Resolução permite ao psicólogo, em sua atuação no sistema prisional, realizar atividades com vistas à individualização da pena quando o apenado ingressa no sistema prisional – estas atividades, que incluem as avaliativas, podem ser ponto de partida para a ação profissional do psicólogo no sistema prisional, sendo, portanto, distintas do exame criminológico. Quando houver determinação judicial, o psicólogo deve explicitar os limites éticos de sua atuação ao juízo e poderá elaborar um documento objetivo, informativo e resumido, com foco na análise contextual da situação vivenciada pelo sujeito na instituição e nos projetos terapêuticos por ele experenciados durante a execução da pena (Art. 4º, Parágrafo único da Res. nº 009/2010)”. Segundo ainda o CFP, “a nova redação do Artigo 112 da Lei exclui a necessidade de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico para motivar e preceder a decisão de conceder a progressão de pena. A Resolução do CFP, portanto, adequou a prática psicológica à legislação nacional”.
No entanto, várias contestações foram feitas à Resolução nº 09/2010 do CFP. Uma das mais contundentes objeções à referida Resolução foi a Recomendação da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, que requereu a suspensão da Resolução nº 09/2010, sob pena de que o CFP viesse a responder à Ação Civil Pública. A Procuradoria da República apresentou uma série de justificativas que embasaram sua Recomendação ao CFP de suspensão da Resolução 09/2010. Segundo a Procuradoria, “a Constituição Federal estabelece como regra o livre exercício profissional, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (art. 5°, XIII, CF), descabendo aos conselhos profissionais, por meio de resoluções, estabelecer vedações ao exercício profissional não previstas em lei”, indicando assim que o CFP estaria extrapolando sua possibilidade de ação ao proibir os psicólogos de atuarem na realização do exame criminológico. A Procuradoria também considerou que a vedação estabelecida pelo CFP na Resolução 09/2010 esvaziava consideravelmente as atribuições funcionais dos “psicólogos forenses pelo país, restringido o respectivo exercício profissional em prejuízo do regular funcionamento do sistema prisional, da bem informada atuação do Ministério Público e da motivação técnica da prestação jurisdictional” (tal entendimento da Procuradoria da República foi corroborado pela Sociedade Brasileira de Psicologia e pela Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental). No que tange às questões legais que, segundo o CFP, o exame criminológico infringiria, a Procuradoria manifestou-se da seguinte maneira: “os arts. 6° e 112 da Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84), na redação que lhes deu a Lei 10.792/2003, ao contrário do que fez constar o Conselho Federal de Psicologia ao fundamentar a Resolução n. 0912010, não vedaram as antes especificadas atividades dos psicólogos, submetendo-as, sim, à decisão motivada do juiz pela sua realização, como já declararam, em súmula, as Cortes que no Brasil dão a última palavra na interpretação das leis e da Constituição, fazendo-o nestes termos: "Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada" (verbete n. 429 do Superior Tribunal de Justiça) e "Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2o da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do beneficio, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico" (súmula vinculante n. 26 do Supremo Tribunal Federal)”. Segundo ainda a Procuradoria, “as atividades vedadas aos psicólogos na Res. n. 09/10 não afrontam necessariamente, ao contrário do que parece supor o Conselho na motivação do ato, o direito da pessoa presa à assistência à saúde (arts. 11, lI, da LEP), na qual está compreendida a assistência psicológica como prevê o art. 15 da Res. n. 14/94 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, editado para atender recomendação do Comitê Permanente de Prevenção ao Crime e Justiça Penal das Nações Unidas, sendo possível e recomendável que essas atividades sejam compatibilizadas com o referido direito, sem a necessidade de vedação, mesmo porque, a teor do art. 10 da LEP, a assistência ao preso objetiva prevenir o crime e orientar o retomo à convivência em sociedade”. A Procuradoria segue sua argumentação favorável ao exame criminológico afirmando que “os fundamentos da Resolução nº 09/2010, de regra centrados nos aspectos psicológicos da questão e nos interesses do apenado, devem ser compatibilizados com outros interesses de grande relevância social em beneficio da sociedade em geral, como a prevenção de reincidência (especialmente quanto aos apenados de alta periculosidade ou ocupantes de posições de comando nas organizações criminosas) e a verificação do grau de adesão do apenado ao programa individualizador da pena a que se refere o art. 6° da Lei de Execuções Penais (dando cumprimento ao inciso XLVI do art. 5° da CF), bem como o interesse social de que as decisões judiciais sejam adequadamente instruídas para viabilizar a melhor apreciação possível pelo Poder Judiciário das questões que lhe são submetidas viabilizando, por conseqüência, adequada motivação segundo a necessidade identificada por cada magistrado”.
Sendo assim, diante do exposto acima, o CFP acabou suspendendo os efeitos da Resolução nº 09/2010, pelo prazo de seis meses, a partir de 02 de setembro de 2010, por meio da Resolução nº 019/2010, acatando, então, a Recomendação da Procuradoria da República no Rio Grande do Sul – Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão. O CFP informou que tomara a decisão de suspender provisoriamente sua Resolução nº 09/2010, na expectativa de poder defendê-la em audiência pública indicada pela Procuradoria do Rio Grande do Sul quando da Recomendação da suspensão. Segundo o CFP, tal debate seria “oportuno na medida em que a discussão sobre a Resolução não fique restrita à Psicologia e ao Sistema Judiciário, englobando também atores importantes nesse cenário tais como o Ministério da Justiça, a Defensoria Pública, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e a Pastoral Carcerária, entre outros.”
Após isso, inúmeras audiências públicas foram realizadas pelo CFP e por suas regionais em vários locais do país. Ao final, o CFP decidiu por liberar os psicólogos para participarem da realização dos exames criminológicos, por meio da Resolução nº 012/2011, que entrou em vigor no dia 02 de junho de 2011, revogando a antiga Resolução nº 09/2010. Assim, o Artigo 4o. da última Resolução do CFP, que trata da elaboração de documentos escritos para subsidiar a decisão judicial na execução das penas, passou a estabelecer que “a partir da decisão judicial fundamentada que determina a elaboração do exame criminológico ou outros documentos escritos com a finalidade de instruir processo de execução penal, excetuadas as situações previstas na alínea 'a', caberá à(ao) psicóloga(o) somente realizar a perícia psicológica, a partir dos quesitos elaborados pelo demandante e dentro dos parâmetros técnico-científicos e éticos da profissão”. No entanto, a nova Resolução veda ao psicólogo, no contexto da elaboração do exame criminológico, “a elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinqüente”.
Diante disso, o presente capítulo da novela sobre o polêmico exame criminológico parece ter chegado ao fim, no entanto outros ainda devem estar por vir...
Autores:
Quirino Cordeiro (1)Hilda Clotilde Penteado Morana (2)
(1) Psiquiatra Forense; Professor Assistente e Chefe do Departamento de Psiquiatria e
Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo;
Diretor do Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (CAISM) da Irmandade
da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo;
(2) Psiquiatra Forense; Perita do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo.
Doutora em Psiquiatria Forense pela USP
Disponível em: Psychiatry on line Brazil - Maio de 2011 - Vol.16 - Nº 5 /Julho de 2011 - Vol.16 - Nº 7
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