Autor: Dr. Walmor J. Piccinini
Introdução
A tradição oral descreve algumas influências importantes sobre a psiquiatria brasileira. O século XIX seria marcado pela grande influência francesa. A primeira metade do século XX, começando por Juliano Moreira, seria influenciada pelos psiquiatras alemães, e a segunda metade muda o eixo de influência para os psiquiatras de língua inglesa, primeiro os ingleses e mais recentemente os americanos. Nós utilizaremos esta pesquisa sobre Psiquiatria Forense para mapear alguns pontos focais dessas influências. Utilizando a bibliografia coletada no Índice Bibliográfico Brasileiro de Psiquiatria constatamos que um terço dos artigos publicados até o ano de 1900 tratam de assuntos médico-legais e é marcada a influência francesa.
Os franceses e a psiquiatria legal
Jean Étienne Dominique Esquirol ( 1772-1840) estudou e trabalhou com Pinel. Junto com seus colaboradores, entre os quais J.P.Falret, trabalhou na preparação da Lei de 30 de junho de 1838 que foi modelo para muitos países, para a assistência aos insanos. Um dos seus efeitos foi a obrigatoriedade da criação de estabelecimentos públicos para os insanos que ele denominou asilos. A idéia do nome veio da sua formação religiosa e para evitar o nome Hospital que na época tinha má fama.
Em 1838 publicou o tratado "Des maladies mentales considerées sous les rapponts medical, hygienique et medico-legal". Nesse trabalho ele definiu uma série de fenômenos psicopatológicos, tais como a idiotia, demência, alucinações, que são empregados até hoje. Um outro ponto foi diferenciar a mania (delírio geral ou loucura propriamente dita) das monomanias. O conceito de monomanias ( loucura parcial) teve grande importância nos primeiros momentos da psiquiatria legal. As monomanias eram subdivididas em: intelectuais, afetivas e instintivas. A idéia de monomanias do tipo homicida influenciou o campo médico-legal.
J.P.Falret, logo após a morte de Esquirol passou a defender a idéia da inexistência das monomanias. De qualquer forma, a idéia de que a loucura não era um fenômeno global, que podia ser dividida em elementos primários alterou a maneira com que os médicos e o público em geral encaravam a loucura.
Benedict August Morel (1809-1873) foi influenciado por JP Falret e tornou-se um dos pioneiros da medicina legal na França. O seu "Tratado da Degeneração" foi muito bem aceito pelos psiquiatras de asilo que viviam uma fase de desânimo e uma sensação de fracasso diante da loucura. A degeneração "era um desvio mórbido de um primitivo ideal do ser humano". A degeneração podia ocorrer por influência do meio que "cria nas crianças um estado orgânico específico ou um estado transmissível com potencial para levar a extinção da raça".
Esquirol e Morel foram criados para a vida eclesiástica. A influência cristã aparece no conceito de Asilo e na degeneração, no homem imperfeito. Morel partia da idéia que Deus criou o homem perfeito e que o meio ambiente foi degenerando a criatura. A idéia da "seleção natural" de Darwin bateu de frente nessa idéia que foi modificada. Os adeptos da degeneração criaram o conceito de desvio na evolução e seguiram em frente.
As idéias de degeneração foram adotas no Brasil, trouxemos alguns títulos de trabalhos, sem julgamento de mérito, apenas como constatação.
. Eiras, Carlos. A paralisia geral dos degenerados. Arq.De Jurisprudência Médica e Antropologia,Rio De Janeiro. 1897; 1(1)::61.
Souza Júnior, Cláudio J. de. Dos nevropatas e dos degenerados. Doutoramento,Tese-Fac.Med.Do Rio De Janeiro. 1897.
Velho, Leonel Gomes. Do degenerado e sua capacidade civil. Doutoramento,Tese-Fac.Med.Do Rio De Janeiro. 1895.
Numa revisão de 165 publicações no período de 1831 a 1900 encontramos 5 sobre monomanias, 6 com degeneração no título, 7 sobre epilepsia e crime, 15 sobre paralíticos gerais e crime, 28 sobre assuntos médico-legais, desses, 5 se referiam a suicídio. Alcoolismo e drogas 9 e sobre tabagismo 1.
Criminologia
O conhecimento dos conceitos e a evolução da criminologia são necessários para acompanhar a produção bibliográfica dos psiquiatras forenses brasileiros. Os interessados nesse assunto muito teriam a ganhar se fossem visitar a excelente coletânea de textos psiquiátricos forenses que o Prof. Talvane Moraes organizou na página do Ipub-UFRJ (http://acd.ufrj.br/ipub/download/downl00.htm ).
1. Determinismo. Crime como opção livre e individual. Penas drásticas. No período de 1500-1750, filósofos que estudavam o crime, consideravam que a opção pelo crime era individual e de livre determinação. Como conseqüência o criminoso era severamente punido. Procurava-se controlar o crime pelo medo da punição.
2. A Escola Clássica de Criminologia acompanhava as idéias do iluminismo que dominou o século XVIII. As principais características iluministas eram: ênfase no progresso, individualismo, o uso da razão, o questionamento da tradição, o uso de dados empíricos para testar idéias abstratas. O italiano Cesare Beccaria ( 1738-1794) foi o grande reformador do sistema penal da sua época. Criticava a punição arbitrária e desmedida dos juízes. Sua proposta era que a punição fosse de acordo com a gravidade da ofensa. O poder absoluto dos juízes sofreria limitação. Sua idéia era que crimes similares recebessem a mesma punição. Punir a conseqüência e não a intenção. O Código criminal francês de 1701 adotou idéias de Beccaria. Infelizmente ignorava as diferenças dos ofensores e as diferentes circunstâncias dos crimes. Tratava igualmente o criminoso primário e o repetitivo quando eram condenados por ofensas similares. Não contemplaram os ofensores menores de idade, loucos e retardados. O Código criminal francês de 1819 já permitia aos juízes considerar as circunstâncias do crime.
O determinismo, "free will" permanecia, mas a responsabilidade criminal podia ser influenciada pela patologia, incompetência e insanidade.
Começa a ser aceita a idéia da premeditação como agravante. A idade, capacidade mental e as circunstâncias do crime poderiam ser atenuantes que poderiam mitigar a punição e reduzir a responsabilidade penal.
Surgem os testemunhos de especialistas como auxiliares dos juízes. Começa a aparecer a idéia de reabilitação do ofensor. A punição busca modificar o ofensor de modo que não volte a reincidir nas ações criminosas.
3. Cartografia
A cartografia é o mapeamento do crime (Gerry, um advogado francês, publicou em 1833 e Quetelet, matemático Belga, publicou em 1838. Trabalhando independentemente chegaram a mesma conclusão: Eles descobriram que o registro anual do crime num país, permanece constante ao longo do tempo e que cada tipo de crime permanece na mesma proporção do total ao longo do tempo. Eles concluíram que o registro oficial de crimes é "um achado regular da atividade social" o que é melhor explicado pela condição social do que pelas predisposições individuais. Esse apoio cartográfico foi utilizado por Émile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da Sociologia, no seu famoso estudo do suicídio. Ele é defensor da idéia que o crime é um acontecimento normal da vida social e deve ser estudado a partir das relações na estrutura social.
4. Positivismo ou a Criminologia Científica
A moderna criminologia científica se deve ao trabalho de 3 italianos estudiosos do crime. Cesare Lombroso que era médico, Enrico Ferri e Raffaele Garofalo, advogados. Eles viam a escola clássica como "metafísica"e que a ideia do criminoso por livre opção deveria ser eliminada. Os positivistas buscavam as causas dos crimes e como combate-las.
No início do século XX o judiciário continuava a adotar as idéias clássicas o que criou um hiato entre a moderna criminologia e o sistema judiciário.
Cesare Lombroso (1835-1929) é considerado o pai da criminologia. Defendia a idéia biológica do crime ( o criminoso nato), que lhe rendeu muitas críticas, mais tarde enfatizou a loucura, a educação pobre e a condição social como causas da criminalidade.
Enrico Ferri (1856-1929) e Raffaele Garofalo (1852-1934), ao estudarem as causas do crime, se fixaram em causas, como o clima, a idade, raça, sexo, psicologia, densidade populacional e condições político-econômicas. Garofalo deu especial importância para aspectos psicológicos como a ausência de compaixão entre os ofensores. As idéias da criminologia científica significaram um avanço sobre o trabalho especulativo da escola clássica.
A Psiquiatria brasileira e os criminosos
No século XIX ainda não se pode falar em psiquiatria brasileira. Os primeiros psiquiatras foram aparecer no início do século XX. Os primeiros médicos de asilo foram clínicos gerais, legistas. Tisiologistas e outros que formaram o embrião da psiquiatria brasileira. A influência francesa nas suas publicações era marcante. O tratamento moral de Pinel era aplicado nos asilos. As concepções de loucura delinqüente nos laudos apresentavam o conceito de monomanias, de degeneração de Morel, o de criminosos natos de Lombroso e finalmente os loucos morais de Maudsley. Em meados do século XX começaram a surgir as idéias kraepelinianas, depois as psicanalíticas, as idéias eugênicas e s propostas de esterilização.
Manicômios Judiciários
Os insanos delinqüentes eram mantidos em áreas especiais dos asilos. Havia a Seção Cesare Lombroso no Hospital Nacional de Alienados. Uma área similar existia no Hospício São Pedro de Porto Alegre. A dificuldade de manejo desse tipo de pacientes exigiu a construção de manicômios especializados.
O primeiro Manicômio Judiciário foi inaugurado no Rio de Janeiro em 1921. Seu diretor no período de 1921 a 1954 quando faleceu, foi o Dr. Heitor Carrillo. Atualmente o MJ leva seu nome.
O segundo foi inaugurado em 4 de outubro de 1925, em Porto Alegre, RS. Seu primeiro diretor foi o Dr. Jancinto Godoy que era médico-legista da Chefatura de Polícia desde 1913. O Manicômio iniciou num Pavilhão do Hospício São Pedro, com 13 doentes. Segundo o próprio Dr. Godoy, foi feita a opção por um asilo-especial sem nenhuma ligação com a Casa de Correção e com o Hospital São Pedro. O modelo foi o do Criminal Lunatic Asylum of Broadmoor existente na Inglaterra e que os norte-americanos aperfeiçoaram em dois asilos modelares o de Meattewan (1892) e o Danemora Hospital for Insane Convicts (1902).
Em 1938 o Manicômio recebeu o nome de Maurício Cardoso.
A criação dos manicômios, termo que hoje virou um rótulo depreciativo e bandeira de grupos políticos, foi uma conseqüência da luta pelos direitos dos doentes mentais criminosos, iniciadas por Teixeira Brandão (1854-1922). O Prof. Isaías Paim publicou na Revista Brasiliense de Psiquiatria, 1(1): 07-21, 1971 sob o título Desenvolvimento da Psicopatologia Forense no Brasil, trechos de um artigo em que destaca a luta do Prof. Teixeira Brandão a partir de um artigo do mesmo publicado em 1886 sobre "Os alienados do Brasil.
A lei francesa de 30 de junho de 1838, como já referimos, serviu de modelo para vários países. Sobre ela Teixeira Brandão escreveu: "Essa lei impôs deveres às autoridades e traçou regras que devem ser seguidas para a seqüestração do alienado; e no intuito de impedir as violências ou o abandono deles. Determinou que, mesmo persistindo no seio das famílias, ficassem sob a salvaguarda e fiscalização da autoridade pública".
O Código Criminal do Império, no artigo 10 no parágrafo 2, declara irresponsável o indivíduo que praticou algum ato delituoso em estado de perturbação mental, estabelecendo: não se julgarão criminosos os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos, e neles cometerem o crime. O artigo 12, do mesmo Código, diz: os loucos que tiverem cometido crimes serão recolhidos às casas para eles destinadas ou entregues às suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente.
A inexistência de locais especiais para recebe-los determinava que todos terminassem recolhidos à Casa de Correção. O Hospício Pedro II, que recebia doentes mentais vindos de todas as partes do país, através dos seus administradores, recusava-se a abrigar alienados criminosos.
Com a proclamação da República em 1889 e a eleição de Teixeira Brandão para o Congresso Nacional em 1903 surgiu à oportunidade de mudanças. Teixeira Brandão obteve do congresso a aprovação do decreto 132, de 23 de dezembro de 1903, que estabelecia normas para a internação dos alienados. Ficava proibido manter alienados em cadeias públicas ou entre criminosos. O artigo 11 deixava explícito que, "enquanto os Estados não possuírem manicômios criminais, os alienados delinqüentes e os condenados alienados, somente poderão permanecer em asilos públicos nos pavilhões que especialmente se lhes reservem. Como conseqüência da lei, foi instalada uma enfermaria destinada à internação dos alienados delinqüentes e à observação dos acusados suspeitos de alienação mental no Hospício Nacional de Alienados. Surgiu a Seção Lombroso que funcionava com muitos problemas e que foi extinta com a criação da Manicômio Judiciário do Rio de janeiro em 1921.
Paim, em seu artigo, a partir da análise das publicações, destaca e critica alguns médicos. O primeiro trabalho bastante elogiado foi o de José de Oliveira Ferreira Júnior com sua Tese intitulada "Da responsabilidade legal dos alienados.(1887). O Livro de Franco da Rocha "Esboço de Psiquiatria Forense", publicado em 1905 recebe uma crítica contundente. Os maiores elogios são destinados a Afrânio Peixoto (1876-1947) considerado por ele o legítimo fundador da especialidade Psicopatologia Forense. Se Afrânio foi considerado o fundador, Heitor Carrilho ( 1890-1954) seria seu maior representante e sistematizador desta nova especialidade. É notável a longa permanência de Heitor Carrilho a frente do Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro, desde a fundação em 1921 até a data da sua morte em 1954. Outro nome destacado foi Oswaldo domingos de Moraes cuja tese "Contribuição ao estudo dos nexos sintomáticos entre crime e doença mental. – Influência sobre a responsabilidade foi apresentada em 1915 em concurso de cátedra da Faculdade fluminense de Medicina.
No Índice Bibliográfico Brasileiro de Psiquiatria relaciono 509 trabalhos em Psiquiatria forense. Pela simples observação dos títulos podemos ter uma ideia do tipo de preocupação que os psiquiatras tinham a respeito do doente mental insano. Neste trabalho vou apenas registrar que a Psiquiatria forense apresenta na sua história períodos altamente produtivos com outros em que parece desaparecer. No período de 1875 a 1920 registramos 75 trabalhos com temas psiquiátricos forenses. A partir da inauguração do Manicômio Judiciário em 1921 até a morte de Heitor Carrilho em 1954, coletamos 219 trabalhos na área. Este período poderia ser estendido até 1961 e acrescentaríamos 103 artigos.
De 1962 até 1997 registramos apenas 58 trabalhos. A partir de 1998 começam a reaparecer os trabalhos em Psiquiatria forense e até 2001 temos 31 trabalhos publicados. Há um renovado interesse em Psiquiatria forense e me parece justo destacar a figura do Prof. Talvane de Moraes como grande motivador dessa nova fase. Novos nomes estão surgindo ao lado dos já conhecidos. Acrescento uma lista de nomes que estão presentes em inúmeros trabalhos e de certa forma dizem que foi e quem está aparecendo na Psiquiatria forense brasileira.
Heitor Carrilho( 63 trabalhos); Oswald Moraes de Andrade(29); Lásaro Contini (17); Aluisio Câmara(17); Rodrigo Ulysses (12); Nina Rodrigues(11); Oswaldo Domingues de Moraes (10); José Geraldo V.Taborda (10) A C. Pacheco e Silva (9); Nery Marcio (9); Almir Almeida Guimarães(9); Manoel Karacik(8); Talvane de Moraes (8). Desta lista, apenas dois autores são do presente, os demais são do passado da nossa psiquiatria. Dois autores, Eustachio Portella Nunes(7) e Wilson Chebabbi (4) são psicanalistas e seus trabalhos são ecos do passado.
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